É impossível não enxergar a cultura brasileira na animação “Irmão do Jorel” (2014), criação de Juliano Enrico com a Copa Studio, para o canal infantil Cartoon Network (e hoje disponível no streaming HBOMax): a mãe que faz 10 coisas ao mesmo tempo, o pai que adora fazer piadas de “tiozão”, o irmão mais velho que é o melhor em tudo e até mesmo as avós, cada uma com sua personalidade – seja a senhora mal-humorada que não sai da frente da TV, ou a figura boazinha que mima o neto, mesmo que isso deixe ele sem graça. Estão todos lá!
E essa identificação com o que é “nosso” parece ter se tornado um registro potente de Juliano, como podemos perceber em sua mais nova obra, a animação “Acorda, Carlo!” (2023), que estreou no último dia 06 de julho, na Netflix. Aqui, acompanhamos outra criança: Carlo (Gustavo Pereira). Um personagem tão cativante quanto seu antecessor, mesmo sendo completamente diferente em propósito.
Carlo – que reforça sempre que seu nome se pronuncia no “singular” (não é “Carlos”, é Car-lô) – vive em um lugar completamente psicodélico. Ele divide seu tempo com amigos muito diferentes, que vão de unicórnios a “gnogros”. Nessa terra chamada Ilha da Diversão Sem Motivos, uma porção de crianças passam seus dias brincando sob o comando da Montanha Solange (Evelyn Castro). Isso, até que Carlo cai em um sono profundo e acorda 22 anos depois, encontrando um mundo totalmente diferente daquele que ele conhecia.
Um lugar de fantasia que é absurdamente real
Em uma primeira olhada, talvez pelos seus personagens estranhos, o mundo em que Carlo desperta pode não parecer tanto assim com o mundo em que vivemos. Mas, apenas numa primeira olhada, mesmo. Não vai demorar muito até que comecemos a reconhecer as situações embaraçosas – e estressantes – que vivemos cotidianamente: as intermináveis filas de espera, o trânsito cansativo, bater o ponto no trabalho e até mesmo ter que lidar com lembranças de uma época em que se foi feliz.
E é justamente para que você não tenha que lidar com isso que existe a Central de Processamento de Lembranças: uma empresa que “arquiva” memórias para que ninguém tenha que sair de sua zona de conforto. Não ironicamente, Zona de Conforto é nome da cidade onde todos vivem. Lá, eles são comandados pelo Rei Blaus (Alexandre Moreno), que ambiciona a atenção dos cidadãos através de likes e visualizações nas suas redes sociais.
Também é proporcionado ao expectador vivenciar, de uma forma bizarramente divertida, como pode ser o cotidiano inquieto de um motorista de aplicativo, ou as lutas das classes trabalhadoras, que trabalham em detrimento delas mesmas, desde que tenham um serviço para fazer, e até mesmo a busca incessante pela fama instantânea, através do reconhecimento virtual.
Um cenário de cores vibrantes, povoado por seres fantásticos como dragões e vampiros, mas que se aproxima tanto do mundo real, que não tem um único episódio em que não possamos identificar alguém que conhecemos. Ou a nós mesmos. Paradoxalmente divertido e depressivo, tudo ao mesmo tempo!
O Brasil que a gente conhece (e “re-conhece”)
Quando o trailer de “Acorda, Carlo!” foi lançado, não por acaso, já era possível reconhecer um dos mais populares – e talvez um dos mais queridos – memes brasileiros: o vídeo do garoto que dança ao som de um alarme de moto. E digo que não foi por acaso porque esse trecho do trailer, caso todo o restante conseguisse falhar na missão de cativar o público (o que considero pouco provável), certamente faria com que a animação ganhasse sua atenção.
Já enquanto acompanhamos a série, seria inegável, pra qualquer pessoa que se julgue brasileira, não reconhecer as muitas referências às nossas brasilidades. Viajamos por muitos sotaques, de diferentes regiões do país; encontramos nossa culinária, referenciada, principalmente, no amor do protagonista por um biscoito chamado “Goiabitos”; encontramos a musicalidade do funk; o famoso “jeitinho” brasileiro de tentar resolver os problemas na camaradagem; e até mesmo nosso jogo de cintura pra driblar a censura de um governo autoritário, que teima em apagar nossas memórias e, com elas, nossa história. Uma maneira eficaz de permanecer no poder.
Um trabalho primoroso que aparece, ora nas entrelinhas, ora de maneira escrachada, mas sempre de um jeito bem-humorado e que espalha nossa cultura mundo à fora: a animação foi lançada simultaneamente em 79 países e pode ser assistida tanto na língua original, em português, como em inglês e espanhol. Mas, cá entre nós, perde muito de nossa “musicalidade” da fala, quando dublado em outros idiomas, já que a variedade de sotaques pode ser perdida no processo.
Uma colcha de retalhos costurada por anos
Em entrevista, Juliano Enrico diz que suas primeiras ideias para “Acorda, Carlo!” surgiam em 2007. Desde então o autor foi reunindo insights e modificando o personagem principal. Ele conta que foi guardando na memória situações e lugares, até que pudesse chegar em um produto que fosse o ideal para tirar do papel.
O projeto também conta com a produção de Zé Brandão e com a direção de voz de Melissa Garcia. A atriz também interpreta alguns dos personagens do desenho, assim como fazia em “Irmão do Jorel”. E seu trabalho na direção é tão impecável nesta realização quanto foi na anterior.
O time de voz ainda conta com Andrei Duarte, Julia Cartier Bresson, Leandro Ramos, Raul Chequer e Paulo Tiefenthaler, além dos nomes que já citei. Vozes cativantes e super reconhecíveis, o que nos faz ter uma aproximação quase instantânea com essas figuras. Não obstante, os seres que acompanham Carlo em sua jornada para depor o rei Blaus, são tão distantes de pessoas reais em aparência quanto são próximos em personalidade.
E aqui vala um destaque para a Pomba Tatiana (Julia Cartier Bresson), que é a personificação do mal-humor. Tatiana tenta superar seus traumas de infância que a impedem de voar como qualquer pombo comum.
Mas, afinal, é pra criança?
É bem provável que, caso você já conheça “Irmão do Jorel”, você já saiba a resposta para essa pergunta. Em “Acorda, Carlo!” é possível, para os adultos, reconhecer as motivações e traumas que regem as personalidades das figuras que aparecem nos 13 episódios, de cerca e 20 minutos, desta primeira temporada. Debates sobre solidão, superação e a forma como se lida com problemas triviais do cotidiano (como ter um vizinho em obras). Não apenas, mas também os vários easter eggs que fazem alusão aos anos 1980: brinquedos como o Pogobol, rádios gravadores, patinetes e assim por diante.
Porém, também estão presentes itens da cultura pop contemporânea, como hoverboards, reuniões proferidas por video chamadas e até os próprios smartphones, protagonistas de nossas vidas, publicizadas 24 horas por dia.
Nesse balaio, nossos protagonistas, junto com todos que os seguem, conversam sobre a força de uma amizade, sobre nunca esquecer e sobre a importância de ser honesto. Com os outros e consigo mesmo. Tudo isso de forma simples e direta, com uma linguagem bastante acessível, mesmo para os que tem menos bagagem. E, claro, com muitas cores, músicas em quase todos os episódios e um protagonista que pode ter a idade dos seus filhos.
“Acorda, Carlo!”, afinal, trata, principalmente, da importância de se divertir e de levar consigo o garoto que fomos nos idos anos de nossas infâncias. Em sua essência, o desenho nos mostra como a brincadeira pode ser, no fim do dia, a verdadeira maneira de revolucionar. E ainda fortalece nossa cultura!
Apesar de ainda não ter nota da crítica especializada no Rotten Tomatoes, “Acorda, Carlo!” tem 80% da aprovação do público. No IMDB, sua note é 8,4/10. Vale muito a conferida!
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